quarta-feira, 4 de julho de 2012

Estória da Cachaça

Diz que "Nosso Senhor Jesus Cristo corria uma vez por uma estrada, fugindo dos judeus. Morria de fome e de sede, debaixo de um solão enorme. Já não agüentava mais de cansaço quando avistou um canavial. Então escondeu-se entre as suas folhas, refrescou do calor, descansou, chupou uns gomos e matou a fome. Ao retirar-se, estendeu as mãos sobre as canas e as abençoou, prometendo que delas o homem haveria de tirar boa e doce. No outro dia, à mesma hora, o diabo saiu das fornalhas do inferno, cornos chifres e o rabo
queimados, galopando pela estrada foi dar no mesmo canavial. Vendo o verde das canas entendeu de refrescar e espojar-se nas folhas. As canas, porém, atiraram-lhe pelos, começando ele a coçar-se.
Furioso, cortou um gomo e começou a chupar; mas o caldo estava azedo, e caindo-lhe no goto queimou-lhe as goelas. O diabo então danou-se e prometeu que da cana o homem haveria de tirar uma bebida tão ardente como as caldeiras do inferno. 
E é por isso que a cana dá o açúcar, por causa da bênção de Nosso Senhor, e a cachaça, por causa da maldição do diabo," conforme uma lenda que Alfredo Brandão colheu em Alagoas. 




 Outros contam que a seca estava braba no sertão. No céu, as nuvens carregadas de chuva passavam, indiferentes. O gado morria nos campos sem pastagem. As árvores, já sem folhas, esturricadas, pareciam mãos pedindo piedade, implorando chuva. Os retirantes, em bandos, soturnos, calados, pareciam mais fantasmas caminhando pelas estradas poeirentas.
Então, um sertanejo todo o santo dia, pela manhã, caminhava léguas e léguas para ir buscar água num poço, para a família beber e salvar umas touceiras de cana plantadas perto de casa. O poço secou. Para que as canas não morressem, o pobre homem matou um macaco que ia passando - um macaco retirante, corrido da seca - e regou com o sangue as touceirinhas, que melhoraram. O sangue do macaco acabou; mas, não choveu.
Ia passando um leão bem grande e velho, cansado, fugindo da estiagem. O homem matou o leão e todo o seu sangue foi para refrescar as canas. O sangue do leão acabou e as chuvas não chegaram.
Então o sertanejo que, de bicho-de-fôlego, só tinha um porco (com licença da palavra), teve que matar o bichinho, comeu a carne com sua família e o sangue foi todinho usado para regar as touceiras de cana.
Antes de ver as canas morrerem, as chuvas chegaram, com relâmpagos e trovões. Os campos num instante ficaram bonitos, cobertos de pastagem para o gado. As árvores se cobriram de folhas, flores e frutos. As canas ficaram uma beleza.
Dizem que foi por isso que quando o homem bebe demais fica fazendo macaquices, brabo que só um leão. E, quando cai, bêbado, ronca como um porco. Entrou pela perna do pato, saiu pela perna do pinto e el-rei mandou dizer que você contasse mais cinco. 


Fonte: MAIOR, Mário Solto. Cachaça. Rio de Janeiro: Instituto do Açúcar e do Álcool, 1970. 118p. 







Ilustração: Cavic